Admito, tenho gostado mais do Substack do que imaginei. Escrever aqui tem sido quase como um diálogo com as vozes na minha cabeça. É uma forma de esvaziar a mente de tanta informação que consumo ao longo da semana, seja de forma consciente ou não. Já comentei em outras newsletters que venho escrevendo bastante sobre meu futuro livro, e aqui compartilho uma autorreflexão desse processo, que acabou se arrastando e ficando de lado por muito mais tempo do que eu previa.
Eu ainda não tinha processado o luto da viagem. Pode parecer estranho, mas escrever sobre minhas aventuras pelo continente africano trazia um desconforto que eu não sabia explicar. Não era só saudade, era como se eu estivesse tentando resgatar aquele Cainã de outros tempos, numa busca que, olhando agora, era utópica.
Com o tempo, percebi que enfim consegui encerrar esse luto. E o resultado? Tenho adorado escrever sobre essa viagem, de forma que agora tudo flui. Por isso, hoje a newsletter é dedicada a um dos personagens dessa aventura, alguém que estará no livro. Vou deixar aqui um capítulo para que vocês possam conhecer um herói do Zimbábue com quem cruzei, e dar uma ideia do que virá dos meus escritos.
🪖🎖️ O general Mpsi
Nas manhãs gélidas escuto o chiado do rádio e os passos abafados que denunciam sua aproximação. Na fresta da cozinha, se esconde por trás de um sobretudo enquanto revira páginas de um jornal desatualizado. Mesmo com a idade avançada e a voz rouca, não media esforços ao criticar o regime ditatorial de seu país.
— Desgraça e sensacionalismo como sempre! Ao menos esse jornal limpa a nossa merda - o comentário tão previsível quanto a arte de cagar, dava-lhe o gozo sobre o que se queixar do atual cenário.
Na frigideira ao centro, o cheiro de um óleo tão vencido como o governo regente lhe dava alguns lampejos por qual lutar. No seu passado, a batalha sangrenta travada contra os colonos não o deixaria impune. Sequelas, como espasmos e a parcial perda motora, o faziam derrubar xícaras adocicadas quase como um esporte diário. Os incontáveis cacos poderiam ser motivos de lamúria. Porém Savee, a esposa, longe de ser vidente, previa as manchas açucaradas na roupa do militar aposentado, mas não arquitetava que o homem ao seu lado, aniquilador de centenas durante a libertação do país, se tornaria mais doce do que amargo.
Detentor de saberes místicos, as lendas diziam que foi agraciado com os poderes da mãe África e incumbido na missão de proteger o Zimbabwe. Tornando-se imortal frente ao homem terreno, Mpsi jamais haveria de ser abatido segundo as profecias, e rumores de sua bravura corriam aos ouvidos das ex-colônias, que entre as várias narrativas de suas façanhas pareciam ser fruto de imaginações férteis. Ele, avô de tantos, talvez utilizasse de peripécias fantasiosas para encorajar a nova geração, e como pais que fomentam a imagem de Noel e induzem ao comportamento do bom menino, a figura Mpsi, fictícia ou não, inspirava os miúdos na defesa das terras africanas perante uma possível ameaça. O sargento nostálgico, na busca do glamour, talvez nunca devidamente atribuído por estátuas, fazia colocar em xeque a veracidade dos fatos, e o meu instinto jornalístico ansiava por provas.
🎬A encenação
Naquela mesma noite a céu aberto, as estrelas reluziam em maior contingente, e a grande constelação do Cruzeiro do Sul se perdia no vasto oceano. Na ausência de eletricidade, sentávamos em volta da fogueira com as mãos oleosas ao sabor do frango recém abatido. Observo Mpsi lamber os dedos em silêncio e cismo sobre suas então faladas façanhas. Desconfiado, indago sobre seu histórico.
- É verdade o que falam de você?
Mpsi bruscamente cessa os movimentos, como se as palavras profanadas acionassem algo hibernado. Sem emanar qualquer ruído, sua faceta assumia traços pesados. O sorriso se perdia, e o semblante readquiriu a lenda.
O olhar dilatava como quem porta um rifle. Suas veias ao corpo, até então camufladas sob a pele flácida que a idade acobertou, revelaram-se tão rígidas quanto o punho cerrado. A família, testemunha das tantas aparições do tenente falecido, logo se aquietava a sua presença. O silêncio envolvia o espaço quando o último rasgo de vento cessou as chamas.
Mpsi, posto de pé, alinhava a postura como se estivesse em campo. Cerrava os olhos próximo ao gatilho imagético ao passo que o dedo retraía em quadros lentos. Na precisão exímia de quem calculou o tiro letal, a bala imaginária cruzava o percurso ausente de som, até Mpsi preencher os pulmões e dramatizar o espetáculo sonoro “Páaaaa”. A sonoplastia do disparo ao acertar o alvo ressoava tão real quanto os beiços contraídos de quem, apático, abateu o inimigo.
A pouca saliva e a boca ressecada não o impediam de prosseguir a encenação. Gesticulava em expressões explosivas, até que subitamente o roteiro fugiu do esperado. Posto ao chão, Mpsi sob lamúrias se contraia no abdômen. Apunhalado pelos antepassados. A vida cobrava-lhe o preço da glória em campo, e as marcas de fuzil pelo corpo expunham o custo da independência pelo sangue jorrado.
Bastidores
A figura de Mpisi foi uma das primeiras pessoas que conheci no continente africano. Logo após deixar a África do Sul, eu não fazia ideia de que o Zimbábue iria me apresentar tanto a ele quanto a Mohamed, cuja história ficará para o livro.
Mpisi ainda está vivo enquanto escrevo, e mantenho contato esporádico com seus filhos. Passei quase três meses em sua companhia, onde tive a oportunidade de aprender mais sobre a história do país, assistir a uma partida de futebol no interior, limpar estradas a golpes de machado ao lado dos locais, presenciar o abate de um elefante e ver a carne alimentar mais de 500 pessoas. São tantas histórias em um único país, e em breve espero materializar isso no livro. Bem, hoje newsletter é mais literária com meus escritos. Breve soltrei uma nova com informações mais práticas sobre o podcast! E se você leu até aqui, escreva nos comentários o que tem achado, vai ser de grande ajuda nesse processo da escrita e saber a opinião de vocês.