[Viajante sem pauta #014]Do volante ao altar: O Motorista que conduzia a oração
Algumas crônicas de minhas rasuras...
O último episódio que foi ao ar tratou do turismo em favelas, especificamente na Rocinha, no Rio de Janeiro. Uma das minhas motivações ao abordar esse tema era entender se tudo não passava de uma romantização ou algo que ia contra a lógica do turismo. E confesso: eu, Cainã, estava profundamente enganado.
Posso afirmar que, entre tantas pautas que já estudei pra gravação, essa foi a de lone que mais mexeu comigo. Durante a pesquisa, percebi o quanto meus pensamentos eram baseados em estereótipos e preconceitos sobre o turismo nesses espaços. Tanto eu quanto Amanda Areias, minha co-host, antes de lermos sobre o tema, dissemos algo próximo de: "Eu não faria um tour na Rocinha." Mas, ao longo do processo, ao nos debruçarmos sobre matérias, estudos acadêmicos, TCCs de estudantes de turismo, documentários e relatos pessoais, nossa visão mudou completamente. Foi um aprendizado valioso, um convite a sair da ignorância e estudar o tema a fundo.
Não quero me alongar muito, mas recomendo fortemente que você escute o episódio. A conversa com os guias locais, Gilmar e Juliana, foi transformadora. E, se você quiser fazer um tour com eles, de maneira responsável, pessoas que nasceram lá e saberem com maestria conduzir o tour, é só entrar em contato pelo Instagram deles.
O substack é um mural tanto prático para os bastidores do podcast, como se tornou um espaço pessoal onde partilho dos meus escritos. Então abaixo segue um dos meus sobre uma passagem pelo continente africano.
🚌🇿🇼 A partida rumo a capital de Zimbabawe
Ao primeiro passo dentro do automóvel, somos recebidos calorosamente por um motorista de traços acolhedores e de bochechas rechonchudas. Os botões bem alinhados da gola e camisa eram indicadores de um funcionário dedicado. Seu carisma era acompanhado de um eufórico “Que Deus o acompanhe! dirigido a cada passageiro.
Com todos acomodados nos assentos, o motorista inicia o discurso que precede qualquer viagem:"Por favor, apertem os cintos e informem-nos sobre as paradas necessárias." Seguia o roteiro padrão, até o instante que ele caminha ao centro do corredor e emana em alto tom:
"Vocês investiram bastante para estarem aqui!" Enaltecia cada palavra proferida com fervor, seus gestos dramáticos ecoavam como os de um padre em ofício. "Esta viagem custaram-lhe 600 rands!" - Balançava uma nota no ar, evidenciando seu valor. "Portanto, se alguém estiver com os documentos ilegais, manifeste-se agora para que possamos auxiliá-lo." – Auxilia-lo? O que poderia um motorista fazer? Pensei alto.- Ele olha por cima dos óculos, percorre o olhar atentamente entre cada passageiro em busca de qualquer sinal de desconforto. No entanto, o silêncio persiste por alguns instantes, até que...
- Louvado seja o senhor!!! –o motorista manifestava o ato como se testemunha-se um milagre. - Todos estão sendo abençoados pelo nosso... - exprimia cada palavra aos cânticos enquanto apontava o indicador ao teto em referência ao reino dos céus. - Então rezemos juntos para nossa proteção, e que Ele nos guie nessa longa jornada - todos fechavam os olhos. Exceto eu.
Eles curvam a cabeça e em silencio e entregam-se a orar. Uns entrelaçavam os dedos com força e outros pressionavam a insígnia contra o peito. O padre à paisana ditava o ritmo das preces, sua corda vocal crescia em intensidade enquanto recitava no dialeto local. Os passageiros seguiam seu exemplo com fervor. Eu, longe de ser cientista, mas que busca por evidências, sentia a reação química se intensificar. O fenômeno químico estava a beira da explodir.
"Aleluia! Aleluia, irmãos! Glória ao Senhor!", ressoou pelas paredes do veículo. Se a química da devoção fosse contagiosa, nenhum descrente poderia sair dali sem ser tocado pela palavra do Senhor.
Pensei estar em uma excursão de um único grupo da igreja. No entanto, antes que eu pudesse elucidar meus pensamentos, uma nova onda de vozes se elevou. Diferente da primeira, agora o som tinha um ritmo e uma sonoridade única. As vozes femininas iniciaram, seguidas pelos graves dos homens que intensificaram o coro. Todos ali conheciam seu momento no espetáculo orquestrado. A música, de cunho gospel ortodoxo envolveu completamente o ambiente e permaneceu por longos minutos sem perder o entusiasmo. Eu, envolvido na graça divina, batia palmas sorridente. Meu nervosismo foi expurgado no santuário, provando que qualquer lugar é a morada do senhor. E o motorista, desempenhando dois papéis simultâneos, conduzia com primor sua missão de garantir a segurança de todos, sob a proteção celestial.
Enquanto o veículo avançava, uma nova paisagem se desdobrava diante dos meus olhos. O verde exuberante das montanhas gradualmente cedia espaço para um mar de árvores secas e retorcidas. Com o rosto colado a janela, refletia sobre meu novo destino, Zimbábue. Percebo que meu conhecimento se restringia a estereótipos e eu mal conseguia distinguir o que difere os países africanos, especialmente em termos de sua estrutura, história, fauna, flora, ou seja, nada.
No entanto, as percepções e nuances entre os países vizinhos começaram a se destacar de forma sutil. À medida que nos aproximávamos do Zimbábue, olhando pelo retrovisor, o asfalto dava lugar a um terreno arenoso. O solo árido nos brindava com boas sacudidas, enquanto os pneus do veículo rugiam contra o terreno acidentado.
⚽ A genética do futebol
Enquanto os trancos não pareciam assustar o motorista, que dominava com maestria entre curvas e ultrapassagens. O rastro de poeira preenchia o veículo, levando espirros e lacrimejo aos passageiros, que rapidamente fecharam os vidros sem objeção, privando-se da única fonte de ventilação. Logo, os termômetros dispararam, e as gotas de suor começaram a escorrer pelos meus poros.
-Na América também é quente assim?" - o vizinho de assento percebe meu desconforto e lança a isca para iniciar um diálogo.
-Olha, não posso dizer com certeza. Mas no Brasil, também faz calor como aqui." - respondi, enquanto tentava em vão abanar as mãos em busca de frescor.
-Você é do Brasil! Carnaval, que país lindo!" - me indagava se era sobre as belezas naturais ou as curvas femininas, tão estereotipadas lá fora.
-Vocês têm bons jogadores; Ronaldo, Kaká, Romário, Ronaldinho..." - este último lhe escapava da memória.
Gaúcho?" - arrisco um palpite sem muita certeza.
Isso!" - os vizinhos de assento também se juntaram à prosa ao ouvirem falar de futebol. E mesmo com o declínio no cenário futebolístico, ainda éramos reconhecidos por isso.
-Eu escutava o Pelé. Ele era realmente bom de bola!" - fico impressionado pelo verbo "escutar", visto que a aparência do interlocutor condizia com sua idade.
E você joga futebol, certo?" – a pergunta de tão alegre que só buscava reafirmar nossos estereótipos, me levou a tomar medidas drásticas. Pecar.
"Desde criança!" — todos sorriram, exceto meu avô. Em algum lugar no céu, ele me observava, desaprovando o neto que jamais havia tocado em uma bola.
✏️ Nota do autor
Eu amo viajar de onibus, não pelo fato econômico como muitos pensam. Claro, a depender da distancia, condições da estrada e outros fatores, tudo se torna um fardo. Mas sabendo que aquele trajeto será uma unica vez, me deleito nos personagens que se apresentam. Padres em oficio nesses espaços não faltam no continente africano. Mas também os vendedores. Tenho rasurado sobre estes, desde um vendedor que vendia mel em vidros, onde o selo de qualidade estava: uma abelha dentro como prova de ser mel onde até mesmo o inseto ousou “roubar” e a roupa listrada. Coincidência ou não, a mensagem estava ali, sou o homem abelha vendedor. E assim o vendedor seguia do som "- Olha o mel!!! Ziiiii ( som de abelha) pousando em você. E assim ele ganhava seu cliente. Paguei os 5 do lares pela história.
Ou então, na Zâmbia, quando um vendedor trajava um uniforme de cozinheiro completo, incluindo o icônico chapéu de chef. Ele poderia facilmente passar despercebido, mas sua roupa chamava a atenção com o propósito de ver visto. Enquanto ele equilibrava com maestria uma bandeja de sanduíches em um estreito corredor do ônibus, esse desviava das idas e vindas dos passageiros. Aquela comida, porém, eu deixei para outra ocasião — o tempero do sal a gosto escorria de seus poros, sob o calor sufocante de quase 35 graus. Pra que sal quando se tem o toque do chef.
Tantos personagens de onibus, que estes ficarão para os próximos relatos, ou quem sabe no livro que vem por ai! rs.
América central: Nesses dias gravamos o episódio sobre a américa central com a Lari, Richard e Nath. Creio que deverá ser o próximo programa a ir pro ar. Foi um ep que chamo de “introdutório” onde demos uma pincelada sobre a américa central antes de falarmos de algum país especifico.
Guatemala: a bancada ficou fechada, Richard, Hugo e Mariana, e tão logo iremos gravar o primeiro episódio sobre um destino da América central. Pode ser que demore um pouco pois um dos convidados está em áreas remotas e sem boa conexão, nós resta esperar o momento oportuno
Vistos africanos:já havia comentando em outras news, mas acabou que por problemas técnicos tivemos que cancelar. Ainda estamos vendo a nova data para gravarmos, mas a bancada será Rafa e Nataly.
Paquistão: eu não tinha colocado no radar esse país tão cedo, por não ter pessoas próximas que foram, e assim facilitar a logística da bancada. Todavia o Fred foi recente, e acabou por me animar. Já chamei o Ti, do mondayfeelings que topou e só falta mais uma pra fechar bancada
Turismo em Chernobyl: como o próprio nome já diz, fiquei empolgado em gravar sobre. Pois após o ep do turismo em favela, lá na comunidade trocar altas conversas sobre a visita nesses espaços que permeiam um certo julgamento e estigma. Então assim que fechar bancada, teremos um ep sobre turismo em Chernobyl
Há algum tempo, tivemos a oportunidade de conversar com Henrique Mangeon, fotógrafo que participou de um episódio sobre sua viagem ao Laos em 1994. Durante o papo, ele compartilhou seus cliques daquela época, e o mais fascinante foi que, além de vermos as fotos, cada imagem trazia consigo uma história, dando um novo significado a cada registro. Isso me fez refletir sobre como eu, Cainã, sentia falta dessas histórias por trás das lentes, que transformam as fotos em algo ainda mais especial.
Por isso, em breve, darei início a um projeto experimental, onde vamos convidar fotógrafos para encontros virtuais, onde eles poderão compartilhar suas imagens e, principalmente, as histórias que tornam esses momentos únicos. E o primeiro convidado será o Eduardo Natan Bitencourt. Ainda verei datas e outras infos, então fiquem ligados. E aqui o site dele onde pode ver mais seus projetos.
Segue um mosaico das carinhas que tivemos dos encontros entre os membros da comunidade! Eles aconteceram na Geórgia, Armênia e no Rio de Janeiro!
E se quiser fazer parte da comunidade, basta assinar aqui! Abaixo cito quais as recompensas de fazer parte. Por hoje é só, me despeço por aqui, e até a próxima gente!
O padre à paisana é clássico em viagens de ônibus, mas ainda não cruzei com um coro como você descreveu. E, falando nisso, ainda quero ouvir um episódio somente sobre esse meio de transporte, ein? Apesar de ter amado as pautas que já estão no forninho, fica o pedido de antecipar o ep de busão 💛 e já ligada pra ouvir mais das andanças do doido do Du!